segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Santo talento!


A designer e artista Estéfi Machado é mais conhecida por sua linha de santinhos feitos em algodão cru estampado, recheados com manta acrílica. Tudo começou com um Santo Antônio, um presente para a mãe de uma amiga. O sucesso foi tão grande que virou notícia e produto. Assim, surgiu o Santo Antônio personalizado: o primeiro santinho da linha, que ganhou outros personagens: sapo encantado, Iemanjá, amuletos e vários outros santinhos com alguma forma de interação com o dono. Além dessas peças, Estéfi desenvolve um trabalho na Turquia com mulheres muçulmanas, e tudo começou com São Jorge, para onde ela foi para conhecer melhor a terra onde o santo teria nascido. Estas e outras experiências com design e trabalho manual, a artista conta nesta entrevista exclusiva para a revista Manual Flávia Ferrari.



Conte para as leitoras de Manual Flávia Ferrari como o design e o trabalho manual entraram em sua vida.
Estéfi Machado. Desde pequena, sempre adorei desenhar, criar minhas próprias coisas, inventava minhas revistas com colagens e jaá diagramava com uma velha máquina de escrever Olivetti! Aliás, qual criança pede uma máquina de escrever como presente de Natal? (risos...)
Além disso, sempre estudei na Waldorf, cujo método pedagógico prioriza as artes tanto quanto o ensino de português e matemática!
Cresci fazendo tricô, pintando com aquarela, fazendo xilogravura, lapidação de pedras preciosas, tecelagem, escultura...E isso, com certeza, me empurrou mais ainda para o trabalho que faço hoje.


Onde você busca as inspirações para o seu trabalho?
E.M. Nas pessoas que eu conheço, com certeza. Adoro fazer presentes e personalizados que ninguém daria, e para isso penso muito na pessoa que receberá o presente. Também adoro estudar referências de outros artistas, ilustradores, e às vezes livros e revistas antigos...


Para você, qual é o papel do design na vida das pessoas? E como ele pode melhorar o nosso dia a dia?
E.M. O design não serve só para deixar nossa vida mais bonita de se ver! Apesar de que isso é muito verdade... (risos). Mas tem uma função, leva uma mensagem, "fala" sem dizer, entende? Convida a experimentar, a exercitar o olhar...


Como o design pode ser um protagonista da sustentabilidade e parceiro da economia criativa?
E.M. O design pode e deve andar junto com a sustentabilidade. Os produtos sustentáveis não precisam ter sempre aquela cara rústica, “natureba”, nem cara de artesanato de feirinha. Existem coisas incríveis nesse mercado hoje em dia.
Aliás, o que faz um produto ser sustentável não é só a cara e o material, mas a atitude que vem junto com ele.


Você já trabalhou o design com comunidades carentes. Conte-nos como foram estes trabalhos e o resultado que agregaram nas famílias.
E.M. Já trabalhei em projetos de geração de renda na Bahia, interior de São Paulo e Minas Gerais. Estas experiências foram muito ricas, porque tínhamos o desafio de criar os produtos junto com a comunidade, aproveitando cada talento do grupo e usando os recursos naturais disponíveis no entorno. E saíram coisas maravilhosas! Alguma foram até exportadas e estiveram à venda em grandes lojas de decoração. E o melhor de tudo, gerou uma renda nunca esperada para essas pessoas. Além de também exercitar nelas o olhar para o ambiente a sua volta e seus recursos naturais.
Atualmente, estou participando de um projeto de geração de renda na Capadócia, Turquia, com uma comunidade de mulheres muçulmanas. Este, mesmo antes das oficinas, já está rendendo muita expectativa e esperança na vila onde São Jorge teria nascido, localizada no Vale de Güzelöz. É uma parceria com a associação Jorge da Capadócia.


Como começou esta parceria?
E.M. Começou em setembro do ano passado, quando a Malga di Paula me procurou para vender meus São Jorges de tecido no site da associação e angariar fundos para o projeto.

Conte-nos mais sobre essa experiência em sua recente viagem à Turquia: o que encontrou, o que mais a impressionou, como são as artesãs e técnicas que pretende aplicar em seu trabalho no Brasil.
E.M. Há algo na Capadócia que arrepia e vira, mexe e faz chorar... Quando cheguei a Güzelöz, na vila onde São jorge teria nascido, fui conhecer as pessoas e o que as mulheres fazem de trabalhos manuais. A primeira impressão e a mais marcante é que as pessoas são todas muito receptivas e abertas à nossa entrada em suas vidas. Sinceramente, achei que pudesse haver alguma "saia justa" em relação a inserir São Jorge no trabalho delas, pois são muçulmanas. Mas surpreendentemente, isso não aconteceu. Quando todos davam seus depoimentos para o documentário que estamos fazendo, todos descreviam São Jorge como um personagem que de fato faz parte da história deles. Aquele cavaleiro com a lança e o dragão sempre esteve ao lado deles, durante a infâancia, nas cavernas e buracos onde brincavam. Então, nada tem de ofensivo, pois de fato faz parte de suas vidas, é inegável.
As mulheres vestem seu próprio trabalho manual. Fazem um barrado de crochê em toda a volta dos lenços que usam nos cabelos, e é um trabalho muito delicado e caprichado, superdetalhista, perfeito. Elas sabem combinar as cores e criam uma harmonia com o restante do lenço que já chega pronto pra elas.
Quando voltamos especificamente para conhecer todo os trabalhos, elas chegaram com muitos panos de prato, bordados em ponto cruz, e quadrinhos com personagens que nem sequer fazem parte de sua cultura, como, por exemplo, o coelhinho da Páscoa. Entendo que elas devam ter um anseio natural de fazer coisas além de sua cultura, mas o que queremos nesse projeto é justamente resgatar e fortalecer o que elas têm de mais autêntico e genuíno.
E foi entrando na casa de uma delas que vi, por acaso, penduradas em uma espécie de varal, algumas peças de tear com cores vibrantes e riquíssimas, com grafismos ao mesmo tempo sutis e fortes. Perguntei por aquele tipo de trabalho e elas disseram que era antigo e que não se fazia mais... A lã era de ovelhas, era cardada e fiada por elas mesmas, e tingida naturalmente.
Foi aí que meu coração palpitou! E pensei, “é isso que vamos fazer!”, ou seja, juntar as gerações, trabalhar no verdadeiro sentido de cooperativa, convidar senhoras mais velhas para passar so conhecimento para outras gerações. E manter viva a arte que realmente pertence à Vila de Güzelöz. As mulheres se mostraram muito receptivas e disseram que o que sugerirmos será bem-vindo se houver a perspectiva de renda para o grupo.
A minha ideia é usar como base o trabalho que elas fazem, o mais tradicional e autêntico, e empregar e peças para o nosso dia a dia, pois os produtos devem ser comprados por turistas que realmente valorizem suas peças, e não por caridade e assistencialismo. Além disso, temos o plano de futuramente exportar as peças em lojas étnicas de comércio solidário, onde serão seguramente valorizadas como merecem.
Combinei com as mulheres de mandar modelos e protótipos de peças de São Paulo, para que elas mesmas conversem e debatam como trazer aquela tradição do tear para os produtos contemporâneos.
E em minha próxima ida à vila, elas mostrarão sua” lição de casa” e faremos uma oficina para decidir a linha de produtos e, depois, produzi-los em quantidade para comercialização local e internacional.
Além da lã nesse trabalho, identifiquei em abundância sementes de abóbora, folhagem, um frutinho espinhoso e o mármore travertino, que se encontra pelas ruas. Ainda iremos testar a funcionalidade deste material, mas certamente o forte dessa vila já está decido por ela mesmo: será o tear feito à mão, aplicado em jogos americanos, almofadas, capas para laptop, slings para carregar bebês, e outros produtos que serão testados em protótipos. E tudo trazendo sempre os grafismo de São Jorge, sutis como os que elas já produzem, e fortes como elas sabem ser.


Depois de conhecermos seu maravilhoso trabalho com São Jorge e as mulheres muçulmanas, diga para nossas leitoras o que é a casa para você!
E.M. A casa? Nossa casa? É o nosso ninho, nossa cara, tudo o que vivemos na vida em cada cantinho, histórias, aconchego... o melhor lugar para se estar.




Serviço
Sobre o trabalho de Estéfi Machado: http://toranjarosa.com –e-mail: estefi@toranjarosa.com
Sobre o trabalho da associação Jorge da Capadócia: www.jorgedacapadocia.com.br

Entrevista publicada na edição nº 1 da revista Manual Flávia Ferrari.

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